domingo, 28 de novembro de 2010

Das cinzas em silêncio




Caiu novamente e dessa vez a sensação era de que o mundo rodava dentro de sua cabeça. O velho havia ido embora, o grito deixara um zunido. Ardência no nariz e uma sudorese que intercalava com ondas de frios. O corpo gelado de um homem perdido.

Ficou imóvel de bruços no chão. A água empoçada ali ficava quente com o seu calor, era uterino. Lembranças. O cordão umbilical rompido muito cedo fez com que a criança fosse afastada da mãe. Ele sempre ouviu o pai. O pai era um homem rígido, mas conversado. Dizia sempre as frases necessárias. Era como um guerreiro oriental que com poucos toques derruba o inimigo.

Sempre desarmado, perdeu os efeitos das frases e naquela hora já se sentida enraizado no chão úmido. O paraíso estava próximo. Adão e Eva eram ideias e só. A maçã talvez fosse a vida que levara até então. A serpente a mulher, que aos poucos o fez crer que o sofá era uma saída. O cigarro que tragava às escondidas serviu como culpa durante aquele tempo. A mulher lembrava as advertências do ministério da saúde sempre que via alguém fumando. Besteiras.

Ainda quente, o chão acolhedor do útero era bom apesar da tontura. A ardência diminuía aos poucos. As ondas de frio cessaram e o que ficou foi uma náusea e uma vontade de gritar tão grande que resultou em silêncio. Os sapos pararam de coachar. Os olhos foram fechando, a gestação ia se cumprindo.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

sem açúcar


Amanheceu cada um de um lado da cama. De costas um pro outro já haviam acordado á bastante tempo, mas talvez a vergonha, a culpa ou o medo os fizesse ainda fingir que dormiam. Durante todos aqueles minutos que se passavam no silêncio, imóveis eles apenas se lembravam dela e do quanto á noite anterior os havia deixado mais próximos daquilo que jamais poderiam ter de novo.

De repente ela levantou. Ele fechou os olhos pra fingir que não a via. Ela foi até a cozinha passar um café e preparar algo para comer, não sabia como deveria lidar com ele naquele amanhecer. Fazia anos que ela não era amada com tanta intensidade e voracidade, fazia anos desde á ultima vez que um homem a deixou daquela forma. Mas no fundo ela sabia que nada daquilo era realmente pra ela, ainda assim isso não tirava o sorriso de seu rosto nos momentos em que ela era capaz de esquecer o quão tudo aquilo havia sido doentio.

Ele deitado aos poucos colocava a mente em ordem. Que horas já deveriam ser? Era fato que ele estava atrasado, mas isso não importava. A ressaca era grande, mas maior ainda era a tristeza que sentia. Chorou sozinho e tentando fazer o mínimo de barulho possível. Foi quando ela veio com o café da manhã e ele enxugou as lágrimas. Sem dizer nada se abraçaram e choraram juntos. Foi apenas questão de tempo pra que acontecesse mais um beijo e pra que entre lágrimas novamente eles se afogassem um no outro.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

O céu na terra


Caiu na cama. Quando percebeu já era noite. Lua crescente. Pensou na vida e lembrou do braço. Tocou as pequenas queimaduras. Percebeu o formato. Quatro pontos, três de um lado e um de outro. Não doíam, mas estavam ali. Ele não lembrava de nada depois do sapo. Ouviu o coachar de muitos. Cada vez mais iam aumentando a quantidade. Era um brejo ainda, apesar do escuro. Era uma música apesar do tempo.

Tocou os braços e estava gelado. Percebeu no chão o brilho das peles que refletiam com exatidão a luz da lua. Percebeu a lua na água. O céu estava ali. O paraíso afinal não era um campo com névoas. Lembrou da vez que o pai contou que São Pedro não deixava qualquer um entrar no céu. Cachorros, por exemplo. Ali ele tinha certeza que os sapos podiam entrar. Estava no céu. Sentiu vontade de contar para o pai.

Estava com fome, mas sem apetite. Queria saber onde estava, mas não queria sair dali. Era bom. Era o local que havia no mundo para viver. Cada palmo daquele lugar era um mistério. Os pés, agora mais firmes, respondiam ao choque com o chão molhado e gelado. Era bom, afinal, era o céu.

Três passos. O velho apareceu na sua cabeça. Dessa vez soltava fumaça pelos olhos, boca, nariz e ouvido. Queimava por dentro? Uma folha cheia de sereno bateu na sua cara e o velho partiu. Um cheiro, no entanto, havia ficado. Era parecido com um incenso. Doce e enjoativo. Mesmo sem saber de onde vinha, sabia que aquele cheiro era um sinal. Ouviu um grito. Era alto e enjoativo.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

pedras


Todo amanhecer era vago. O sol de cada dia, mais uma xícara de café. Não dava pra perder os velhos hábitos. No fundo ela já começava a esquecer e sem nem perceber morria. O filho não parava em casa, ela por sua vez já quase não saia. Feira, supermercado, pagar algumas contas e olhe lá. Já não valia a pena ver de novo nada que não fosse a sua televisão durante a tarde.

Rezava, chorava e dormia. Pedia perdão pelo que havia feito ao filho, amaldiçoava o antigo marido e se deitava no quarto frio e pequeno. Ela nem sequer se incomodava mais com os gemidos que vinham do quarto do filho quando enfim ele resolvia aparecer. Nem sequer se incomodava mais de acordar de madrugada ouvindo ele e a namorada discutindo ou simplesmente se consumindo na escada ou no banheiro. Ela nem sequer se incomodava com o cheiro daquele cigarro estranho que os dois gostavam de fumar ou com as muitas bebidas que tomavam fosse lá o dia que fosse.

Assim que eles saiam ela arrumava toda a casa de novo. Limpava os cinzeiros, catava as roupas que eles deixavam espalhadas pela casa, jogava fora as camisinhas e garrafas que surgiam em todo e qualquer lugar. Preparava o almoço e comia sozinha ouvindo o rádio. Não havia fuga, não havia forças. Lentamente ela abraçava o seu silêncio.

domingo, 10 de outubro de 2010

A verdade de pele verde


Ele não entendeu o que estava acontecendo. De fato era parecido com uma cama. Cabia o corpo. Formato anatômico e ergonomia perfeita para suportar o peso do mundo. Milímetros de mato amassado. Gosto de fel.

Uma leveza na cabeça sugeriram uma inspiração mais demorada que a expiração. Era bom estar, era bom ser e só. A satisfação naquele momento era ininteligível. O prazer apagava o desconforto do desconhecido.

Havia uma história sobre os índios que não conseguiam enxergar os navios dos brancos porque aquilo era algo que eles não tinham registrado na mente. Ele, ao contrário, conhecia tudo. Mesmo nunca tendo visto nada igual. Ele estava em casa. A felicidade era tanta que, de repente, quis gritar. Não conseguiu. Quando levantou uma tontura o jogou de volta ao chão.

Tudo flutuava dentro do limite exato da visão. Todo o resto era o invisível que não existia e se ausentava nas preocupações. Lembrou do sapo. Vômito no pé da cama. Marcas no braço, queimaduras pequenas. Tentou levantar novamente. Tontura.

Nada após o sapo. Nada do que lembrasse superaria aquele êxtase. Quem precisava de certezas com aquela felicidade. Debaixo da pele existe muito mais do que a carne pode mostrar. A imagem de um velho passou pela sua cabeça. Tentou levantar. O velho voltou à cabeça.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

memória de elefante


O telefone tocou na madrugada. Ela levantou apressada imaginando que podiam ser noticias do marido. Não eram. O policial teve que insistir muito pra que ela fosse até a delegacia.

Quando chegou lá estava o pasteleiro. Algemado, bêbado, aos prantos. Ela não deu queixa. O levou pra casa, lhe emprestou as roupas do marido, fez uma sopa quente pra ele. Abriram uma garrafa de vinho, conversaram e ele então contou do caso que havia tido com a filha dela. Os dois choraram ao lembrar-se das manias e da beleza dela.

Ele queria tanto relembrá-la que nem se importou que a própria mãe pedisse a ele que contasse como a filha era na cama. Do que ela gostava, o que ela fazia que o deixava louco, como ela gemia.

Quando ela voltou do banheiro vestindo as roupas da filha, foi dito e feito. Os dois encontraram o que estavam buscando e gozaram de todo o prazer doentio que aquilo fosse capaz de proporcionar. Havia uma nova forma de manter vivo o amor que ambos sentiam por ela. E assim eles se amaram pela primeira vez.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Em conserva




Saindo do bar tinha a certeza que de a galinha só enche o papo de gole em gole. Grão em grão é a forma como um escorpião vê um deserto. Com as pernas desajustadas tropeçou invertendo as noções de tempo e espaço, passando de cima para baixo e dentro de um turbilhão.

Viu um sapo grande logo à sua frente. Era grande. Era enorme. Lembrou-se das histórias que o pai contava sobre sapos gigantes em determinadas regiões. Calculou estar longe de casa, pelo que dizia o pai. Lembrou-se da professora de português com a cara oleosa e cheia de verrugas. Lembrou-se das críticas que levava por não querer ser da parte da turma do fundo da sala. No raso daquele barro, um sapo o fez viajar no tempo.

Os olhos cheios de areia, a cara poeirenta e o semblante do cansaço. Os pés e os braços fincaram no chão e o peso do corpo dobrou naquele momento. Teve vontade de chorar, mas dormiu antes. A tristeza era um sonífero, misturada ao álcool tornava-se infalível. É assim para muitos. Ele nunca foi exceção de regras.

Quando o sereno lambeu a cara, sentiu seu corpo rodar. Flutuar. Era sensação que tinha quando criança. A mãe o rodava segurando pelos braços. Até que um dia ele escapou das mãos da mãe. Até que um dia, escapou das mãos da mulher. Até que um dia e não se sabe como desapareceu e encontrou o futuro nos olhos de um sapo.

Acordou em uma cama próxima a um brejo, no meio de uma mata fechada.