quarta-feira, 28 de julho de 2010

De boca em boca




Sentou na calçada e mal podia crer no que estava se passando ali, acolá ou em qualquer lugar. Seu corpo formigava de tanto amor, como a dor que se sente quando não há como descrever. Pensou que poderia pesar nos braços aquele bebê, pensou que a mãe não era só prazer era a possibilidade de vida. Pensou que ser amante não era compatível com a posição de “Ricardão viúvo” que se debatia dentro da cabeça. A notícia veio através das bocas mal lavadas da freguesia.

Enfiou a mão no bolso e sentiu no pedaço de papel o cheiro, o gosto e tudo o quanto é tolice brega. Era um cartão que ela havia entregado no dias antes e pedido para que ele lesse só quando soubesse que era hora. Enfim, já havia passado. A carne estava mais fria que a certeza. Amassou o cartão como se consumisse seu conteúdo e atirou-se na lanchonete. Sem qualquer resposta, apenas o avental sujo

No balcão uma senhora tomava o seu pingado com uma fatia de queijo indigesta. Ela mastigava e ele parecia saber o tamanho exato de cada pedaço triturado. O som daquela boca sugando o café fazia o corpo tremer. No exato momento em que aquilo tudo passava de incômodo para um mantra a faca caiu quebrando o transe. Com a ponta voltada pros pés do atendente, aquela faca serviu de pretexto para que a dona lhe dissesse “Verdade ou consequência?”

Na boca o queijo e o hálito de café se misturavam em sentença de vida. Ele pediu a verdade e ela não pestanejou “Você prefere sangue ou maionese?”

domingo, 18 de julho de 2010

perdas e ganhos


Os gritos seguiam. Ele fumava na sala, quieto. Como se nem sequer estivesse ali. Tudo já estava resolvido, alguns amigos o haviam ajudado com as questões burocráticas da coisa. Alguns parentes ajudavam, ou pelo menos tentavam, com a questão sentimental da esposa. Ele tragava seu cigarro.

Pediu licença a todos, chamou um amigo próximo e o disse que necessitava de um momento. Compreensivo o amigo lhe cedeu ás chaves do carro, mas alertou sobre a hora em que deveria voltar. Haviam muitas formalidades a serem cumpridas, principalmente por ele. O pai.

Entrou no velho carro do velho amigo, girou a chave, abriu os vidros, engatou a primeira e saiu lento, desatento e confuso. Nem sequer por um minuto buscou alguma justificativa, nem sequer por um minuto ousou se culpar pelo que havia acontecido, nem sequer por um minuto deixou de pensar nas permissões que a situação lhe possibilitaria.

Pelas velhas ruas ele ia de cigarro em cigarro ouvindo as propagandas das rádios e as sirenes das ambulâncias. Ele ia em busca de algo que jamais encontraria e foi quando atingiu desatento os cento e quarenta quilômetros que pode perceber o que havia perdido.

Ele não precisava mais ter medo da vida, pois sua morte agora não deixaria incompleto nenhuma de seus trabalhos. A filha estava entregue e ele enfim podia se entregar a si. A derrota é o sinal de que outro jogo esta prestes a começar.

sábado, 17 de julho de 2010

Dispensa do cargo




Batia no concreto como uma moto desacelerada e velha. Os efeitos não surgiam. Apenas em suas pequenas mãos que sentiam o sangue correr. Grafitando a parede da sala de casa com um misto de terror e vivacidade, o sangue corria frio na parede. Sua fixação traduzia raiva, medo e ódio. Arte. A confirmação da cegonha infernal veio através de um SMS: sintoma dos novos tempos.

A mãe nunca desejou o destino da filha daquela forma, perdida, grávida, sem saber de quem. Isso era tudo o que ela não desejava definitivamente. O seu destino sim, ela conseguiu premeditar: uma certa ocasião, um certo rapaz de família, sem apelo sexual, por mais que fosse um tarado. Escolhas.

Quando o celular tocou a mãe com sua premonição, ouvia simplesmente as trombetas do juízo final. A moça optou pelo celular da mãe, não queria falar com o pai. Com os anos a genitora alimentou o cão dentro da moça que apenas evitava a grande escroto natal.

Na primeira frase a mãe delirava sobre a sua própria vida. Afinal, ela pensava tanto, por que justamente a inteligência a menina tinha que herdar do pai. “Uma puta!” ela pensou xingar, mas foi interrompida pela voz de choro misturada com álcool.

A avó tentou colocar as coisas nos eixos e como um exú fazer a comunicação da filha com alguma divindade...em vão. Ela estava entregue ao último pesadelo. Remédios, conhaque, nada de amor, nada de vida, nada de perdão. Espasmos...talvez o último delírio de uma pessoa sufocada. O sufoco da saliva poderia ser menos nocivo que o das ideias.

Mas...como a adolescente havia crescido, não pedia mais nada para os pais, apenas avisava. E avisou.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

procriação


Quando abriu os olhos já eram quase duas da tarde. Levantou-se lentamente ainda sentido os efeitos dos excessos da noite anterior. Por alguns minutos refletiu sob o que havia feito, escovou os dentes e desceu até a cozinha. A mãe estava sozinha, comia seu almoço e a moça então se sentiu enjoada e correu até o banheiro.

Voltou depois de colocar quase tudo o que carregava na barriga pra fora, mas a mãe logo percebeu que naquela barriga havia ainda mais alguma coisa.

Sem dizer nada a mãe tratou de iniciar os mimos a filha que acreditava que aquele enjôo era culpa da vodca vagabunda, dos cigarros e da maionese da lanchonete. O pai não estava em casa e tão pouco parecia que iria chegar, mas não fazia falta pra nenhuma das duas.

A filha se sentia culpada por demandar tanta atenção da mãe, ela pensava que aquilo devia ser algum tipo de punição pelo deslize que havia cometido. A mãe se sentia completa em cuidar da filha. Ela pensava que aquilo era um tipo de recompensa por tudo o que havia suportado ao longo da vida.

A vida surge nos lugares mais inóspitos.

domingo, 11 de julho de 2010

Com um rabo entre as pernas





A vontade foi maior que a razão naquele dia. Cedendo ao chamado do instinto foi ao puteiro que não era exatamente a sua especialidade. Lá podia extravasar a suas necessidades. Era lá que as mulheres ganhavam um sabor genérico de prateleiras. Isso o agradava. Ao menos era plástico e não amargo.

Exatamente naquela poltrona vermelha e sintética ele podia ouvir os mais variados elogios, as mais lindas declarações. Fosse pelo perfume, fosse pelo pinto ou pelo bolso. Era sempre a mesma coisa. Às vezes, se sentia culpado, mas com a cabeça cheia de si não pensava mais. O transe que aquelas músicas provocavam, ajudavam a sufocar a realidade juntamente às fumaças das bocas e do palco. O cheiro de talco e perfume vencido era uma droga viciante. E voltava. Inspirava o fecundo odor de genitálias.

Sentou. Olhou. Escolheu seu bife e pediu mal passado e rebolando, sem cebolas. A moça sentou no colo e disse um nome que era fruto de uma leitura das revistas de fofoca, dispostas na sala de depilação. Ele agradou do cheiro, sentiu profundamente um amor por aquele pescoço maternal. Cheirou, lambeu, mordeu, bolou o ensaio de um gozo. Parou.

Quando se desvencilhou da cabeleira oxigenada, olhou o par de olhos que não acreditavam no que viam. Seu sogro, pai de sua querida noiva, enfrentava um julgamento difícil. Seus cabelos desarrumados não demonstravam a seriedade contida no sofá da sala ou na cabeceira da mesa de jantar. Lembrou da noiva, lembrou da sogra. E não sentiu a lambida que levou ao pé ouvido. Era como um conselho molhado para os seus pensamentos tão áridos naquele momento.

O sogro olhou, acreditou no que via, mas impedido de olhar fixamente por seis nádegas que flutuavam entre os dois, desistiu. Os passos do urso com o micro rabo entre as pernas demonstraram o medo de ser um puto. O risco maior era o de perder o poder de apertar o controle remoto. Plim plim.

terça-feira, 6 de julho de 2010

velho punk




Mesmo quando o despertador não toca, ele levanta as seis. O corpo já se acostumou a isso. A mulher dorme feito pedra. Ele prepara um café. O silêncio é uma suave melodia, esse quase sempre é o melhor momento de seu dia.

Lê o jornal, vai ao banheiro, faz a barba, toma banho se arruma e sai. Mesmo que não tenha nada pra fazer, mesmo que não tenha pra onde ir. Caminha lentamente sem direção, ás vezes compra pão e leite, ás vezes para no ponto de ônibus pra assistir o tempo passar, ás vezes se senta na igreja e dorme na missa.

Hoje se sentou na praça, comprou um cigarro a varejo e ficou tonto enquanto tragava. Hoje ele se sente diferente, alguma coisa nele quer explodir, alguma coisa nele quer saltar, alguma coisa nele pede socorro. Um simples cigarro pela manhã, essa é sua forma de exteriorizar sua revolta e ao mesmo tempo de se recompensar por todo esforço que a vida lhe cobra.

Entre os tragos e sua paranóia ele vê a filha caminhando em direção de casa. Mas o que ela faz aqui? E á essa hora na rua? Deve estar espionando o pobre homem a mando da mãe. Ela vai contar tudo o que viu. Ele vai ser repreendido, punido! Rapidamente apaga o cigarro e se esconde atrás da banca de jornal. Ela parece não tê-lo visto, estava com a cabeça em outro lugar, nas nuvens talvez.

Ele se sentou novamente, mas não antes de ir á banca e comprar mais um cigarro. Algo florescia naquele homem.

domingo, 4 de julho de 2010

Só um tapinha




Era o início da manhã, não tardava a movimentação nas ruas chegaria. Com os olhos ainda inchados pela bebedeira do dia anterior, não lembrava muito bem como havia chegado em casa. Lembra dos tubos de maionese jogados no chão, lembra de colocar a moça sobre o balcão e isso o fazia feliz.

O chefe viajou. Como diria a avó: o gato sai, os ratos fazem a festa.

O sorriso alternava com as fisgadas ao fundo dos olhos. Tateando as paredes buscou o sabonete que tinha cheiro de desinfetante. Tentou lavar a alma naquele banho. Tentou mais um orgasmo com a pouca lembrança. Vodca prejudica a masturbação no dia seguinte.

Nos passos que dava, cada um correspondia ao rosto de um cliente que iria enfrentar naquele feriado. O banho lavou a alma, mas deixou a verdade mais clara. Passou calçadas e rios de asfalto. O que havia no ar não era um cheiro, mas um mal estar crônico de liberdade.

Sacou a chave que tilintava como um sino de igreja. Cada movimento era uma badalada que anunciava o apocalipse no bolso. Abriu a porta e o cenário de um pornô barato o fez recobrar a consciência.

A mão pesou sobre os tubos.

A maionese tem suas funções: alivia a dor e tempera a vida.