terça-feira, 31 de agosto de 2010

bico calado


Não havia o que fazer. Mais uma noite sem dormir, outra manhã ás seis em que o despertador servia apenas pra lhe avisar a hora de parar de tentar. Todos choravam suas magoas, volta e meia algum cliente tocava no assunto, comentava a morte, o desaparecimento, a loja que não abria há dias. Volta e meia alguém especulava milhões de justificativas pra tudo o que estava acontecendo, mas ninguém sabia o que acontecia com ele.

Não ter direito ao luto é algo ingrato. Não ter direito de se lamentar, de pedir ajuda, de sofrer. Ele sangrava cada vez que olhava a vitrine da loja, ele sangrava cada vez que se lembrava dos sorrisos dela, ele sangrava cada vez que relembrava tudo o que havia acontecido entre eles naquele balcão.

Depois das seis fechou a lanchonete e resolveu se entregar em busca de uma saída. Aquela cachaça já estava guardada ali fazia tempo, quando se deu conta ele já estava na vitrine chorando e se perguntando o que poderia ter feito pra impedir o que aconteceu. Já era tarde da noite quando ele resolveu que queria entrar na loja.

Uma chave inglesa, um pé de cabra, uma garrafa de cachaça e um coração partido. Já dentro ele vasculhava as gavetas, encontrava papeis com a letra dela, via as fotos que ficavam no escritório, mexia nas roupas e peças íntimas imaginando que ela as havia tocado. Ajoelhado no chão entre lágrimas ele nem percebeu as sirenes. Não faria diferença, ele já estava preso ao que não foi, mas poderia ter sido.

domingo, 29 de agosto de 2010

Cobertura para o peso




O que aconteceu da vida alheia ninguém soube entender. Com a morte da filha algum sentido havia sido perdido e a sensação de um retorno ficou na cabeça daquela mulher. A volta da filha com seu corpo jovial que exibia atributos. Excitava e dilacerava. Conjugava em seu tempo e gênero, o que viesse a compor o momento.

Sempre desejou ter a idade da filha. Queria não cometer o erro de não se arrepender do casamento. Gostava de pensar na vingança da filha contra a sociedade. A autoconfiança que depositara na menina, ainda um bebê, fez com que o rebento fosse além do que conseguiu. Só de olharem para a sua filha como uma forma de observação sem maiores prejuízos faziam com que o trabalho de educação valesse a pena. Babas, pernas, perdas.

No início era só uma depressão. O vestido da filha sobre o corpo coberto de culpa aliviava a tensão da morte e a perturbação do desaparecimento do marido. Não que fosse importante encontrar o homem, mas atender o telefone era um ato doloroso desde a notícia da morte da menina. O problema era o telefone. Talvez Graham Bell fosse mais criminoso naquele momento que o marido. Mas a culpa precisava ser sempre do homem que devia ser sempre o cúmplice de tudo o que faz mal.

Vestiu aquela roupa ainda com cheiro da menina. O odor de mimos ainda resfriava no cabide. O jeito da filha aos poucos eram os modos da mãe. Quando a roupa que vestia caiu sobre os pés substituída rapidamente pelo vestido, o que restou foi o próximo passo. E a etapa seguinte era a caixa de maquiagens.

Toda dor precisa de uma máscara.

sábado, 21 de agosto de 2010

a cura



Mais um gole. Mais um gole e a vodca ficou na boca por alguns segundos até que ele cuspisse tudo na cara dela que ria enlouquecida de prazer naquele quarto de motel barato. Mais um tapa na cara. Mais um tapa na cara dele que ela dava com toda a sua força. Mais um tapa pra que ele abrisse os olhos e pra que entrasse ainda mais forte no meio das pernas dela. A cama estremecia assim como os corpos suados e imundos dos dois. As bocas se lambiam entre os fluidos que escapavam de todos os orifícios. Era a poesia da dor sufocada em prazer, era a explosão do ódio em gozo, era a liberdade de não se ter mais nada a perder.

Depois de gozar nos peitos dela ele sentou na cama e voltou á realidade, seu filho havia morrido antes mesmo de nascer. Mais um gole de vodca pra levar pra longe o mundo real. Ela o abraçou por trás e ainda um tanto sem ar suplicou por mais em seus ouvidos, ainda sem ar o chamou de todos os nomes e o desafiou a fazê-la gozar mais algumas vezes. Por um instante ele sorriu, mas sorriu sem entender o motivo de sorrir, só sorriu enquanto ela dizia do quanto havia gostado de senti-lo nela daquela forma. Ele havia se encontrado, ele havia se libertado e nada mais era motivo pra se precaver ou se conter. Agora ele era intenso como nunca havia conseguido ser antes em toda a sua vida.

Ela levantou bêbada, nua e suada acendeu um cigarro e se abaixou lentamente sem dobrar as pernas pra pegar sua calcinha que estava jogada num canto qualquer. Ele observando encheu a boca d água e passou a língua entre os lábios enquanto ela sorria safada e certeira pra seu novo amante. Rapidamente ele já estava de pé. A segurou com os braços pra trás e com a mão direita tratou de dar a ela tudo o que ela queria. Todos os jogos eram jogados, todas as vontades eram realizadas, todas as noites eram intermináveis. O bombeiro enfim havia encontrado uma forma de viver em chamas.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Serventia dos dentes



Desde que decidiu cruzar o passeio sabia que não ia voltar. Dentro do carro o calor só não era mais insuportável que a música do rádio. Nunca gostou rádio, nunca escolheu uma música favorita. Quando decidia (na remota fase juvenil) dançar o baile estava no final ou o álcool já havia subido, o que poderia e acontecia simultaneamente.

O passo foi dado na pista de dança, dessa vez, com consciência e com o gosto do famoso “esquenta” para a festa real. O que havia acontecido até ali ia se apagando aos poucos na fraca memória, cabeça de baixa qualidade. A gorjeta da vida ia ser o seu capital inicial. O objetivo era dar o troco em si mesmo.

Depois de sentir os olhos cheios de areia parou para tomar uma cerveja em um bar que de longe parecia uma cena bíblica. Vacas e cavalos no balcão. Um marceneiro e sua mulher em uma mesa discutindo a paternidade do bebê. Cena perfeita para o início, o seu natal.

Um brinde solitário para comemorar a sua sarjeta. O gosto amargo daquela vitória sobre uma culpa inexistente, um fracasso aos olhos dos menos atentos. Cada gole uma batalha dentro de si ia sendo vencida. Guerras, sangue e cerveja.

Na real, apagar o rastro era o que pretendia. Era isso que o diferenciava de tantos outros animais em extinção. Apesar de ser um exemplar socialmente único, era parte de um todo. Um inteiro que engoliu sua vida durante vários finais de tarde, durante todos os jantares de simpatias e perdigotos. Estava aprendendo a rir e morder ao mesmo tempo. Não fechou a conta. Seguiu a sua própria estrela cadente sem reis...

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

zumbilândia



Era tarde e todos começavam a ir embora. Do lado do caixão só ficavam as duas a penar as perdas. Duas velhas senhoras de olhos marejados e em absoluto silêncio. Nada se dizia e todos os movimentos pareciam terremotos a sacudir o corpo flácido das duas ex-avós.

O olhar fixo no chão, os cumprimentos cheios de má vontade e negação. Elas queriam fingir que nada daquilo era real, mas a dor doía fundo no peito daquelas duas mulheres. Duas vidas, duas vidas que se foram sem nem bem ter sido. Quatro vidas que se estraçalharam como ovos ao chão. Elas esperavam por aquele momento, netos, a certeza de que se viverá plenamente, a paciência de desvendar o mundo a outra vida. A dor era insuportável.

Talvez fosse por isso, elas não sabiam o que fazer. Não queriam ter que fazer mais nada. O ar fugia de seus pulmões enquanto as lágrimas desciam sem nem sequer serem notadas. Elas desidratavam suas almas em pranto.

E o que fazer dali pra frente? Pra onde ir? O que buscar? Não havia mais sentido. Não havia mais expectativa, não havia solução ou sequer consolo. A morte de dois era a morte de muitos. Esperar seria a única certeza delas. Esperar e rezar pela alma dos que se precipitaram.

Energia eólica




Ser um homem nunca foi tão difícil. Na realidade nada era tão difícil, mas como a sua criação católica pesava como uma cruz sobre os ombros, a situação era dolorosa. Mesmo que pudesse sorrir. Era isso ou o contrário, ele via a inversão em espelhos e vidros que o cercavam.

Quando o rádio anunciou a hora de retorno, deu meia volta. Parou o carro, saiu, sentiu o ar quente do fim de tarde e mijou na roda do carro. Acendeu um cigarro, depois outro e entrou novamente. A hora e o retorno não faziam sentido naquele momento. O sentido era somente o contrário de tudo.

Girou o volante com a mesma vontade que virava a sua vida. Sentiu que o medo e a razão são só conceitos e de palavras ele já estava cheio. Queria sentir a degradação lenta que a idade reservava. Pretendia organizar a vida como o velho lema do presidente-sorriso, “cinquenta anos em cinco”. E a adrenalina subia com o ponteiro do velocímetro. Novamente cento e quarenta quilômetros. Novamente a vida.

As placas eram luminosas no anoitecer, os postes acesos eram sinais de que o caminho era certo. O pé pesava como o corpo em um gozo dolorido, duzentos quilômetros. A cruz caiu. Um vulto sobre o capô acompanhado de um som abafado. Atropelou a própria consciência e seguiu em frente.

Bem vindo, volte sempre.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

a queda das lágrimas


Todos desfilando o luto. O preto de todas as roupas, as lágrimas e a incompreensão. Ele lá estava, mas ali não queria ficar. Pediu licença a sogra, beijou a mão da mãe e saiu em busca de ar fresco. Na capela ao lado mais um defunto a se deteriorar. Dentro dela apenas três mulheres, pareciam mãe e filhas. Ele as observava como quem olha e não vê. Até que uma delas veio pra fora e acendeu um cigarro.

Os dois se olharam, conversaram e ela era excêntrica, estranha e despertava nele uma sensação de ódio e conforto. Ódio por ela o fazer lembrar-se da outra, e conforto por ela ser a única pessoa entre todas que estavam naquele cemitério a não sentir nenhuma pena dele.

Convidou-a para um café. Descobriu que quem havia morrido era uma tia dela que já estava muito velha. Descobriu também que aquela estranha mulher conseguia sorrir como uma menina e ser irônica e doentiamente fria. Também descobriu que ela carregava uma pequena garrafa de uísque na bolsa e que uísque com café alivia a dor da perda.

Saíram de perto de todos, foram até os túmulos e lá ela acendeu um baseado. Ele que não tinha nada a perder pitou pela primeira vez em sua vida, e enquanto tentava explicar pra ela o motivo dos postes acenderem sozinhos quando a noite chega foi surpreendido por um beijo entre as arvores e as cruzes. Hesitou por um momento, lembrou da outra e afastou a boca da menina desbocada da sua. Olhou-a no fundo dos olhos, assustada, indefesa, perdida e ao mesmo tempo fascinante e tão descompromissada e livre. Foi fácil e absolutamente delicioso descontar toda a sua dor entre aquele belo par de pernas.